terça-feira, 10 de maio de 2011

Lótus, flor.

"Ave
Perdoa o que eu penso
Ave
Livra-me de meus pensamentos
Ave
Misericórdia da carne
Ave."



Estava às favas com o bom senso, o que mais ainda suportaria? Afinal, quando emergiria da lama escura para ser, de fato, flor?
A primeira vez que entrou no banheiro o fez só para certificar-se de como estava a maquiagem. Sentou-se no vaso e com uma das pernas prendeu a porta para que não fosse importunada em seu momento privado. Com os olhos procurou pelo papel - raramente o encontrava - e, vendo-o no alto da janela, preferiu evitar o contorcionismo para pegá-lo e levantou a calça sem se limpar. Quem saberia?
Enfim o espelho. Olhou-se. Quanta coisa se vê em si... quantas cores tirariam a expressão de angústia da sua carne? Olhos pequenos, lábios claros, rosto pálido e coberto de pó. Abriu a porta.
Um sem número de vozes a envolveu. Cheiro. Gosto. Calor de gente. Riu. A quanto tempo não ia àquele lugar? Desde que decidira assumir aquele relacionamento? Realmente não se lembrava da última vez que desejara sentir 5 sentidos num só.Teria sido a quantos anos seu último choro de riso e calafrios?! Seu corpo envolveu-se num ritmo que já conhecia, ele pulsava ao coro que cantava: Love, love. love... love, love, love... all that you can say, can be said. Explodiu em histeria ao saber que o quarteto de Liverpool ainda reinava ali. Pediu uma cerveja; duas; três. Dançava consigo de olhos fechados e duas mãos cortavam o ar aleatoriamente.
Precisou novamente ir ao banheiro.
O equilíbrio de outrora estava afetado, mas ainda assim lembrou-se de pegar o papel. Dessa vez não foi tão fácil segurar a porta e aliviar-se ao mesmo tempo. Limpou-se. Novamente o espelho - liberto, libertino, libertinagem. Aérea olhou para seus arrependimentos refletidos num círculo. Quatro lances de escada, quanta incoerência, Homem do Céu! A traição viera sem receio algum. Quatro lances de escadas para já ouvir o som do ranger da cama e uns grunhidos animalizados. Grandes bestas! Grandes feras! Ao quê você se deixa submeter? Não havia ela seguido todas as regras e parafernálias do amor ou havia sido sincera cedo demais? Assim sentiu a porta bater em sua bunda com tanta força que xingou pausadamente para também ferir a adolescente semi-nua que também desejara usar o banheiro:
F-I-L-H-A-D-A-P-U-T-A!
Agora um bom rock para algum pop. Gira-mundo, mundo gira. Não mais quer ir ao banheiro - não se organiza o caos do coração - pensa. Pede a um garoto com a camisa da Janis que lhe compre uma dose de qualquer-coisa-que-venha num copo de vidro. Ri da expressão do menino ao ver a cor apastelada de sua nota.
-Compre o que quiser pra você.
Enquanto espera para engolir de uma só vez todo o calor líquido daqueles copos, olha tudo que a cerca. Não seria aquela a sua noite na taverna?! Vê as sombrar projetadas no teto e lembra da voz maternal que a embalava antes de dormir quando seus sonhos cabiam num espaço de 1.5 metros. Sente a mão nos seus ombros. Gela. Quando havia sido tocada pela última vez? São suas doses. O susto e a excitação a fazem virar seus copos todas de uma só vez. Sente-se leve. Tão leve que tocaria as formas do teto e as moldaria ao seu bel -prazer. Free as a bird. Sente uma mão na sua cintura, a bebida não permite que ela gele, mas seu coração bate tão forte que os mais cuidadosos ouviriam o estrondo.
-Sozinha?
Porque Diabos uma cantada soaria de modo tão filosófico? Esse não deveria ser o momento em que ela sorriria e faria qualquer charminho típico para parecer íntegra moralmente? Mas Sozinha ecoa tão dentro.
- Hey, é só a função fática da língua.
- Ok. Eu não tinha pensado em nada diferente disso.
- E qual a sua graça?
- Certamente não é falar com meninos.
- Uol, uol! Alguém aqui não sai há algum tempo.
- E..
- É só uma dança, certo?!
Tocou-a no ombro. Na cintura. Encostou-lhe o rosto e roçou-lhe a semi-barba. Sentiu seu hálito de hortelã, aquele mesmo da canção do Chico. Ele puxou-a para perto, bem perto, tão perto que os seios dela se comprimiram. Prazer. Abraçou-a. E ficou quieto, apenas respirando o mesmo ar dela. Submersa, ela ofegava e cedia e tirava-lhe o ar em profundas aspirações.
Dessa vez não se lembra de como chegou ao banheiro, sente apenas seus órgãos exigindo espaço e uma dor irritante na nádega direita. O papel havia acabado, afinal, quantas horas já haviam passado para que tivessem conseguido acabar com 60 metros de papel branco enrolado? Deita seu corpo na porta e encontra-se com o espelho. Seus olhos estão miúdos e definidos como sinais de subtração. Mas naquele lugar o tempo parecia correr às avessas. Ainda que estivesse presente, via-se subindo os 4 lances de escada. Ele dissera: - Não é traição, nem mentira. Ah... ela lhe atirara toda a mobília. Prejuízos da matéria! -Vá benzinho, caso ainda queira conservar o resto desse seu pau público! Ao diabo às aliterações! Ao diabo! Ela chorou pela desonra, pela tristeza, pela raiva e pelo medo. Chorou pela saudade e pelo arrependimento. Chorou por si e pelos outros. Chorou pela flores, pelas crianças e pela fome. Até que não chorou. Guardou o riso sagrado e aí foi só cansaço.
Agora estava presente e viu-se com a testa encostada no espelho. Essas são as curvas que moldam minha mulher. O contorno do receptáculo divino da minha sensualidade. Meu sangue. Quisera ser Alice e transpor o espelho, mas ainda não era flor. Saiu do banheiro.
Por algo bem menos abstrato que o amor, correu em direção ao cavalheiro da dança que já amparava-lhe com os olhos. Enquanto tentava alcançá-lo começar a tocar uma canção com nome de mulher. Toda uma orquestra para Eleonor. Talvez depois seria a vez de Lucy. Tocou-o. Por Deus, assim O era antes de aparecer no banheiro? Que entrega era aquela da sua mente?! Porque o prazer significa adorar. Rendeu-se de olhos fechados.
Em seu próprio estágio de consciência ela está com a face encostada num azulejo branco com flores amareladas. Está com os braços num ângulo de 180 graus abraçando um mundo de delírios. Como fizera para estar naquele cômodo 2x2 com um cheiro exorbitante de eucalipto?! Está tonta, mas não como fora outrora. -Tonta! Por que mantem essa postura? O que quer com seus risos estridentes? - Tonta... o que ele diria agora se a visse sem blusa no banheiro de outro homem? Um outro macho.
-Ei, 'tá tudo certo aí dentro?
Diabos! Ela já quase acreditava que as perguntas dele eram propositalmente filosóficas.
- Minha mente é um banheiro.
- Você não está bem mesmo. Quer ajuda aí dentro?
Não se organiza o caos do coração - pensa.
Ela abre a porta. Atonitamente ele olha para os seios dela descobertos. Estende as mãos para tocá-los. Há um universo entre esse toque, ele sabe. Ela sorri fechando os olhos e com uma graça natural diz:
- São pequenos.
O universo que separava a mão e o toque se trinca.
- São perfeitos.
A partir daí tudo é pictórico demais. O amor que fizeram foi uma série de concessões. Partilharam. Foram o pó.
Ela descera ao mais ínfimo lugar e sentira a lama em seus olhos e boca. Agora emerge no Gozo de uma Flor de Lótus.


"Ave
O desejo de carne
Ave
A libertação do Espírito
Ave
A realização do Ser
Ave
O mistério de ser."